O ar que
nos une
uma exposição concebida para ser vista por quem passa na rua
Como sopro – o primeiro e também o último de uma vida. Na inspiração, quando o mundo nos adentra; na expiração, quando nos projetamos para fora. No ar moram a história do mundo, as nossas afinidades, as nossas relações, as nossas distâncias, os nossos deslocamentos. Podemos pensar que o ar é uma corporeidade na qual nossas experiências se fundem, se atravessam, se tornam coisas inerentes entre todas as coisas. Como explica o filósofo italiano Emanuele Coccia: viver é respirar, é misturar-se, é estar imerso, é “a experiência de estar em alguma coisa, que por sua vez está em nós” (2018).
O ar leva o mundo em seus detalhes para dentro de nós e também move o que nos constitui entre os lugares que habitamos. Tudo está em conexão irrestrita. Estamos em tudo que habita o planeta, que, por sua vez, está e sente todos os impactos do que fazemos. O mundo é uma mistura: inerência e imersão em reciprocidade. Essa é a forma de ser mundo, de estar no mundo. A pandemia tornou ainda mais evidente essa condição para estarmos vivos e talvez, por isso, estejamos mais atentos ao que cada gesto, cada acontecimento, cada sopro no ar nos alertam.
Essas questões estão presentes na mostra “O ar que nos une”, que acontece durante o período de espera para a reabertura de espaços culturais na cidade de São Paulo. A mostra apresenta obras na área externa do MuBE, que permanece fechado. Os trabalhos de Ana Teixeira, Artur Lescher, Laura Vinci, Motta & Lima, Paulo Bruscky e Yoko Ono podem ser vistos por pedestres que estejam andando pela calçada e por motoristas e passageiros de transportes públicos e particulares que transitam pela Avenida Europa, onde está a sede do museu. O título da mostra é livremente inspirado em um texto de Yoko Ono.
A artista apresentou em 1967, na Lisson Gallery, uma instalação com roupas, flores, móveis cortados pela metade e pintados de branco. Segundo Yoko, a sala estava metade povoada de ar, de coisas não vistas ali e que seriam encontradas em algum dia – uma metáfora para falar também da incompletude do ser humano. Para cada metade de objeto que havia sido cortada, a artista criou uma garrafa contendo ar, materializando a metade não presente dos objetos. No texto escrito pela própria artista para comentar a exposição, ela conta a história de 4 músicos que iam se apresentar a uma princesa. Nada se sabia sobre Song, um dos músicos, a não ser que ele, por ser puro demais, simplesmente se transformou em ar e foi assimilado pelos céus. Yoko termina essa história afirmando que há sempre ar entre nós, ainda que estejamos muito próximos, e que não importa o quão separados estejamos, o ar sempre nos conecta. Esse trecho foi publicado na segunda edição de “Graprefruit: A Book of Instruction and Drawings”, em 1970, com o título “Air Talk” (Conversa de ar). E mais tarde, em 1973, Yoko lançou o álbum “Approximately Infinite Universe”, com uma faixa que também tem esse título.
No MuBE, Yoko apresenta “Air Talk”, traduzida para o português. De maneira intimista, o texto guarda a relação de escala do leitor com o livro. Montado em um display, próximo à calçada, no jardim do museu, sua presença atua como um pequeno desvio no cotidiano, uma pausa no percurso: estamos juntos, ainda que distantes. O ar nos toca e nos faz lembrar sobre nossos vínculos, sobre como passamos entre nós nossos patrimônios culturais, sociais, afetivos.
Entre as noções plásticas e conceituais de escultura, objeto e instalação, Artur Lescher produziu “Aerólito preto” (2003). Com 11 metros de comprimento, a peça, que se agiganta das pontas ao meio, repousa no jardim do museu, guardando um ar, como quem prende a respiração para ganhar coragem. O preto do nylon cria um diálogo de tensão com o espaço, causando uma espécie de corte brusco na paisagem, e se contrapõe à leveza do inflável. Uma quantidade de ar represada contribui para a forma do trabalho, assim como seu posicionamento perpendicular em relação à marquise do museu. Há um confronto poético e material entre a marquise, que Paulo Mendes da Rocha sempre pensou como a “pedra no céu” flutuando, e o “Aerólito preto”, que está pousado no chão.
Yoko Ono, Air Talk (Conversa de Ar), 1967.
Artur Lescher, Aerólito, 2003, nylon e motor, 11 m x Ø 3 m. (Obra em manutenção)
Os classificados dos jornais foram por muito tempo um dos únicos espaços de exposição e circulação para os trabalhos do artista Paulo Bruscky que sempre teve em mente a ideia de que “Arte é feita para circular”. Ali, em meio a propagandas de produtos e serviços de toda sorte, o artista infiltrava projetos como o de uma máquina de filmar sonhos, as instruções do “Concerto Celulasional” e o “Disco Antropofágico”, que ia desaparecendo à medida que a agulha da radiola iria tocando-o. A “Série Paisagem” é um conjunto de trabalhos da série “Arte Classificada” que mesclam poesia, projetos de trabalhos irrealizáveis e obras que propõem registros e interações com os fenômenos da natureza. Na marquise do MuBE, Bruscky projetou: “Poema para as Cataratas de Foz do Iguaçu”, “ARTEAERONIMBO”, “Paisagem sonora”, “Arte paisagem”, “ARTE.CLIMA”, e um trecho de um e-mail, em que Bruscky propõe um último trabalho para acompanhar a série. Pensado no calor da hora, o artista escreve: “Segue abaixo mais uma obra sobre o ar: Você pode tirar o AR de TE?”.
Com exceção do e-mail, esses trabalhos aconteceram anteriormente nos classificados dos jornais e estão recontextualizados na mostra, solicitando da imaginação do leitor/transeunte uma conexão com estes poemas-paisagens: “sol, água, foz, tempo, temperatura, espuma, velocidade, fio, queda, cor, olhar, som, gestos, visão, sombras, traçado e arco-íris. Juntar tudo, rodar em um liquidificador na velocidade máxima e beber na memória”; um projeto para tornar uma nuvem colorida; a junção dos sons dos bares e de parques infantis em uma manhã de sábado; “a arte em trânsito e em queda livre”; e a oscilação do clima em Porto Alegre ao longo de um dia.
Paulo Bruscky, “Arte.clima”, “Arteaeronimbo”, “Poemas para as Cataratas de Foz de Iguaçu-PR”, “Paisagem.Sonora” e “Arte Paisagem”, da série Arte Classificada. (A projeção na marquise do MuBE acontece de terça-feira a domingo, de 18h às 24h, até outubro de 2020.)
Pensar o movimento e a impermanência como construção de visualidade permeiam o trabalho “No ar” (2017), de Laura Vinci, que faz parte do acervo de obras-projeto do MuBE. A obra consiste em um sistema de “pequenos bicos de aspersão, funcionando em alta pressão, que são acionados por uma bomba que faz com que a água saia com tanta força que suas gotas ganham uma característica incomum, ficando entre o estado gasoso e o líquido”, conta a artista. O resultado é uma névoa que se espraia desde a marquise e passeia pelo museu, se movendo conforme o vento. Essa bruma efêmera parece funcionar como um agente de conexão entre os trabalhos da mostra e o museu. Uma massa de ar movente e multiforme vai se redesenhando a cada momento, a cada dia que passa.
No Ar, 2017, 2009/2017. Sistema de aspersão. Dimensões variáveis. (Devido a questões relacionadas aos protocolos de saúde e proteção da Covid-19, a obra “No Ar” só estará ligada enquanto o museu estiver fechado, sem acesso ao público, de terça-feira a domingo, de 10h às 20h.).
A AINDA, HOJE, MAS, ONTEM, AMANHÃ, SEMPRE, AGORA, TALVEZ, MENOS, MAIS, SIM, NÃO, NUNCA, AQUI compõem a obra “Em contato” (2014-2019) da artista Ana Teixeira.
Advérbios de modo, de tempo, de lugar, de intensidade, de adversidade grafados em boias brancas se unem, se tocam, se afastam e vão criando no espelho d’água do MuBE composições textuais. Na presença da escultura “Outono Silencioso” (2003), de Arcangelo Ianelli, mais de duzentos bilhões de composições com essas 14 palavras são possíveis, sem nenhuma repetição. As boias de Ana, infladas de ar, comportam-se conforme as correntes de vento que correm pelo museu até a esquina da rua, que avançam da rua pelo passar dos carros para o jardim do museu, que balançam também as folhas das árvores. É o ar se fazendo vento que compõe esses poemas de contato, nos colocando as naturezas dos acontecimentos – os que planejamos, os que irrompem o cotidiano, os que aguardamos, os que nunca veremos.
Ana Teixeira, Em contato, 2014/2019.
Boias infláveis, Ø 90 cm cada
Em 1986, os Yanomami, que vivem em suas terras entre Roraima e o Amazonas, encararam pela primeira vez xawara, palavra que significa as doenças levadas pelo homem branco. Em 4 anos, 20% da população foi dizimada. Garimpo e desmatamento não fazem quarentena e, assim, estima-se que o corona vírus ameaça mais de 40% desse povo, além de outras etnias. Diante desse triste e alarmante contexto, o filme experimental “Xapiri” (2013), de Motta & Lima (em parceria com Laymert Garcia dos Santos, Stella Senra e Bruce Albert), um relato sensível do ritual xamânico dos Yanomami, ganha outra relevância. Projetadas na fachada do museu, que fica na Rua Alemanha, as imagens do trabalho convidam a um outro tempo, em que os Yanomami deixam rastros por onde passam, mesclam-se, ou melhor, integram, a atmosfera xamânica.
Motta & Lima, Xapiri, 2012. Trecho do vídeo projetado na fachada do MuBE. (A projeção de "Xapiri" poderá ser vista até o dia 19 de setembro, de 18h às 24h.)
Com essa reunião de trabalhos, a mostra “O ar que nos une” tenta se conectar às discussões e urgências desses nossos tempos. Há alguns meses nos guardamos (aqueles que podem), nos ressentimos dos encontros, da rua, do estar junto e, ainda assim, o ar nos conecta, circula entre nós, nos aproxima numa comunicação permanente, numa troca de visualidades, de afetos, de forças. Ao mesmo tempo, o ar nos distancia, nos freia, desenha fronteiras. Que os xapiris invadam o asfalto, que espalhem a cura pelo ar!
Galciani Neves
Curadora-chefe do MuBE
setembro/2020